sexta-feira, 26 de junho de 2009

EU PENO, TU PENAS, A PENA, APENAS

Isto não é um lamento.

Também não tenha pena de mim. Essa é minha pena, condenado (e que feliz condenação) à pena que escreve.

O ano da sentença 1991. A responsável pela execução: Tia Janice.

Eu era uma criança de seis anos e não conhecia a verdade. Eu sabia ler as figuras e era feliz. Mas Tia Janice, no Jardim de Infância – e como era lindo o jardim do meu Jardim – a começou a me ensinar que muitos daqueles riscos e rabiscos que eu olhava admirado eram na verdade letras e que letras de mãozinhas dadas eram palavras e palavras uma ao lado da outra viravam histórias. Aquelas histórias que eu desde sempre amei que mamãe contasse.

Tia Janice ensino que quando se sente dor é porque o “A” da a mão para o “I” e então a gente grita “AÍ!” “EI” “OI” “UI”... ensinou também que “au au” faz o cachorro Til Rex e que com o “I” e o “O” a gente podia brincar de “IO-IO”.

Mas chegou o tempo de avançar era o meu segundo ano naquele mundo chamado escola, naquela terra de letras e histórias e de fascínio...

Eis que ao chegar à 1ª série conheço a Tia Isa... ela que de fato me ensinou a conhecer as palavras, com ela, a partir de uma aprendizagem doloroso e algum prazer esparso eu aprendi que as palavras eram delicadas e fortes, e que queriam e precisavam de cuidado.

Ela me ensinou a fazer os antigos rabiscos fazerem sentido, com ela o prazer dos primeiros livrinhos, a primeiras histórias que eu mesmo lia... as primeiras histórias que eu mesmo criava nas aulas de Composição... e era tão mais belo ter aulas de Composição.

Engraçado em dia em que ele me chamou para tomar a leitura. Havia um texto, bem simples, bem pequeno, mas eu ainda não sabia ler. Havia também um desenho de um gato com um novelo de lã. Do texto escrito, mal me lembro e era justamente este que ela queria, mas da figura, do texto que não se escreve, este eu sabia bem dizer... e comecei a ler para ela...

Porém ela ainda não tinha essa compreensão de que quando eu lia a imagem e inventava uma historinha eu estava fazendo a leitura, a minha leitura, que eu estava percorrendo os bosques possíveis e quantos são os caminhos e lacunas existentes no tecido da palavra.

Ela ficou brava, porque eu fazia tudo, menos ler o que ela queria. E foi ali, a partir daquele momento, que eu aprendi... com dor, com sofrimento, fui, pouco a pouco tornando-me “perito em extrair faísca das britas e leite das pedras”, a ler palavras e palalavras.

Fui tomando gosto pela cartilha e pelos livros e pelas histórias e pelas minhas próprias histórias, as minhas composições, e pelas histórias que mamãe sempre a mim contava em casa.

Mas papel é frágil, efêmero... Não tinha me ensinado que o que se ganha se perde... Eu não sabia que se morre... Que só se é enquanto se é e logo depois já não se é mais. E num dia cinza houve um incêndio em minha casa. Meus livros, minhas composições, minhas coisas, tudo, TUDO foi pelos ares. Tudo foi consumido. Tudo. Não restou nem meu coração naquele momento que se dilacerou nas chamas, mas ao mesmo tempo veio uma tal vontade de viver, uma tal vontade de reviver, renascer.

Foi nesse dia fatídico que decidi que eu compraria livros e mais livros e teria a minha biblioteca. Para complementá-la eu escreveria histórias e voltaria a ser feliz.

Eu guardava todos os meus dinheiros para isso... tudo... sempre comprando livrinhos, dos mais simples aos mais loucos. Não me importava. Eu queria recompor minha existência, recompor minhas histórias para reconstruir minha própria história.

Eu imaginava que poderia ter e ler todos os livros do mundo e mesmo se eu não os tivesse, só de tê-los eu nutriria sempre aquela sensação gostosa de não ler o livro só para saber que você o tem e pode ler quando quiser e que isso nunca vai acabar.

Mal sabia eu a quantidade de livros que chegaria a ter e da impossibilidade de ler todos, mas ao mesmo tempo de algo eu sabia: que eles, os livros, são fonte de vida, que são “objetos transcendentes” e, como diz a música de Caetano, comecei a amá-los com amor táctil. Minha relação com eles foi se tornando como que uma relação do amor da menina de “Felicidade Clandestina” com As reinações de Narizinho. “Ela não era mais uma menina com seu livro. Era uma mulher com seu amante”.

Assim, talvez, era eu.

Tornei-me pouco a pouco em um aficionado pela leitura. Em todos os seguintes anos do ensino fundamental este gosto pela leitura foi sendo alimentado. Em minha escola tínhamos um dia dedicado à biblioteca – dia em que íamos para a biblioteca e líamos o que queríamos, uma leitura descompromissada, de prazer mesmo, o prazer do texto começou ali. Havia também um caminhão-biblioteca que era a coisa mais fantástica do mundo. Uma biblioteca itinerante que vinha, nos emprestava livro e voltava depois de quinze dias com outros e novos livros. Tudo como um grande incentivo à leitura. Parece que havia alguém, um anjo da leitura talvez, que fazia com que os melhores livros do mundo chegassem direto às minhas mãos. Eu me deleitava com tudo isso.

Ganhei prêmios na escola de leitura, na quinta série ganhei o prêmio de aluno que mais frequentou a biblioteca naquele ano. Mas eu não ligava pra isso. Nunca quis prêmios por ler, eu só gostava daquilo. Era um gosto estranho. Por que não jogar futebol ou videogame ou computador ou ir paquerar com a galera da escola? (não que eu não tenha feito isso, porque os livros não nos afastam do mundo, pelo contrário nos tornam mais atentos ao mundo e seus arredores) Mas não fiz muitas vezes todas essas coisas porque a vontade de ler era maior do que tudo isso. Eu me fazia essas mesmas perguntas, mas ao contrário: por que as pessoas fazem todas as coisas menos ler, que é tão bom?

Fui aos quatorze anos convidado para ser LEITOR na Igreja. Achava aquilo importante. Sentia-me muito honrado. Era a primeira vez que eu lia pra muita gente e ler coisa tão importante, ler escritura, ler a voz de Deus, a palavra dele. Eu me sentia um verdadeiro mensageiro, um arauto enviado do céu para comunicar aos mortais a palavra divina, porque no princípio era o verbo e antes da carne o verbo já existia e antes de mim e de ti que com teus olhos carnais devora as minhas memórias, antes de qualquer coisa, o verbo já existia, ele nos precede.

Talvez hoje seja esse para mim o sentido mesmo da existência. Saber que céus e terras passarão, mas minhas palavras não passarão.

Saber que – apesar de ter sido condenado há vários anos à branca dor da escrita, que precedeu a dor, hoje prazer, da leitura – a pena que me condena é a mesma pena que me conforta. É saber que quando nada nem ninguém mais houver, ainda sim haverá a palavra criadora que me precedeu e que sobreviverá a mim por ser eterna. Como Cecília em seu poema motivo: “Eu canto porque o instante existe/ e minha vida está completa/ não sou alegre nem sou triste/ sou poeta”.