sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Fruição

Nada é mais fluido e
Fluviante e flutual que
O céu azul

Fim da tarde
Anoitece
Cores, matizes

Noite fria e
Sem estrelas
Noite sem ti

O imenso azul
azul mais que azul
escuro

O quarto escuro
teu corpo
mudo

O céu azul
teu corpo no
lençol anil

Teu corpo em mim
imenso em ti
Noite sem fim

Nada mais é
fluido, fluviante
flutual...

...nasceu o sol.

O meu testamento

A pena, o papel, a caneta,
O teclado do meu computador:
O que seria deles sem mim?
O que seria de mim sem eles?

O melhor de mim são eles,
eles me navegam,
eles me arrebatam,
eu me epigramo com eles.

Poemar foi tudo que sempre quis!
Na verdade, o que sempre
Quis e faço é me livrar
De mim ou de ti

Com eles cavo meu túmulo
Sim, aqui jazo eu,
na quarta dimensão
peremptória do instante

E na lápide, não escrevam nada
pois agora que fui livrado
de agora em diante posso dizer:
o que eu escrevi está escrito.

Efemérides nº3

O vento passou pelo mar,
quem viu?
Eu não!
Fez navio naufragar.

O vento passo pelo ar,
sentiu?
Eu não!
Cegando pra sempre o teu coração.

Idos do mar

Ondas do mar
Ondas do mar
mar que me levas
mar que me traz
meu marido

Mar que me levas
Mar que me traz
Por que tu me levas
Por que não me tragas
meu mar ido

ido que vou
ido que vim
me leve contigo
pra imensidão
mar comprido

Temo que não
te lembres de mim
na imensidão
desse mar sem fim
meu marido

Ondas do mar
Ondas do mar
Como vou partir
se eu quero ficar
e assim me
martirizo

FRAGILIDADE DO MUNDO

“Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes fazer um cabelo tornar-se branco ou negro.” (Mateus, V, XXXVI)

FRAGILIDADE DO MUNDO

Vivia num mundo que era só seu. Não saia do prédio em que morava, nem do quarto em que dormia, nem da cama em que vivia, prostrada.
Tinha tanto medo do mundo. De que mundo?
Tinha medo do “mundo exterior”, como chamava o teu mundo, insólito leitor, e por isso vivia em si mesma, num mundo que era só seu. Não falava com sua família, somente a sua mãe lhe trazia alimentos e roupas limpas. Não tinha amigos, não recebia ninguém. Era agressiva com quem tentasse entrar.
Há quinze anos ninguém a via, com exceção de sua mãe e Bibiana, sua única amiga. A única que podia entrar em seu quarto a não ser sua mãe e o médico que sempre ia visitá-la. Mas Bibiana não entrava pela porta como os outros, tão pouco pela pequena janela do quarto de Ana, que ficava sempre fechada (– quem? Ana ou a janela? – Ambas). Bibiana simplesmente aparecia no quarto sempre que Ana desejava.
Não, não era uma amiga imaginária. Era uma menina de verdade.
A Ana sempre falava sozinha dizendo: “Nunca sairei daqui”, quando todos pediam e insistiam. Ana gritava e assustava os vizinhos que pensavam: “coitadinha”, “ela é louca”, “têm que interná-la num hospício”.
Ana sempre teve crises, talvez surtos epiléticos, acessos de loucura, não sei. Só sei que em meio às crises a mãe, D. Maria dos Prazeres, sempre vinha em auxílio da filha, e Ana, mesmo que fora de si, gritava: “Sai daqui, eu não estou sozinha não, hein! Eu não preciso de você. Você não está vendo a Bibiana aqui comigo? Ela está aqui!”
A mãe nunca viu Bibiana e ficava cada vez mais preocupada, pois sabia que o estado da filha era grave; e nunca houvera estado tão grave.
Um dia Aninha, como lhe chamava a mãe, teve outra crise, mais longa e mais grave, que a deixou inconsciente. Pela primeira vez em 15 anos Aninha foi obrigada a deixar seu quarto, seu mundo, para se tratar num quarto de hospital, no mundo do desconhecido, para se refugiar em seu estado de inconsciência, o lugar do total desconhecimento de seu próprio eu.
Após dois dias, Ana acordou e ficou desesperada. Onde estou? Para onde me trouxeram? Onde está Bibiana? Mal pôde respirar aquele ar, tudo era estranho. E todas aquela pessoas, quem eram?
De repente, olhou para frente e viu Bibiana, deitada numa cama como a em que ela estava. Ana achou tudo muito estranho e perguntou a Bibiana: Você também está assim como eu? Onde estamos? O que estamos fazendo aqui?
Bibiana nada respondeu.
“O que está acontecendo? ... Responde!” Bibiana permanecia muda.
Eu bem sabia o que estava acontecendo. Devia ser o efeito dos remédios de Ana, por isso Bibiana na lhe estava respondendo com fazia antes. Mas Ana não tinha dimensão disso, nem disso nem de qualquer outra coisa, ela estava totalmente desequilibrada.
“... Responda!”, gritava Ana. ... “Responda!!!”, gritava ainda mais alto, ainda mais nervosa.
Por um instante não se ouviu mais nada, até que um equipamento médico que a enfermeira havia esquecido perto da cama de Ana foi arremessado por Ana diretamente na cabeça de Bibiana.
Ela está completamente louca, pensei.
Ana olhava arrependida aquele pedaço de ferro que acabara de arremessar e que duramente flutuava e que em um segundo atingiria a cabeça da amiga; e Bibiana olhou fixamente naquele segundo em que não viu nenhum filme de sua vida passar em sua cabeça. Sim, não viu filme algum! Não deu tempo pra isso e tão pouco para que houvesse vida.
O metal acertou direta a cabeça de Bibiana e ela toda (a Bibiana), sem que houvesse sangue nem dor, se partiu em mil pedaços; ela não, eu, eu me parti em mil pedaços, que agora não sou mais Eu, sou Nós – eu e os outros estilhaços do espelho – pois ela, a Bibiana, sou eu, agora quebrado e fragmentário como o tempo e como a própria vida e aquilo que acreditamos ser a realidade – se é que realidade há. A Bibiana é reflexo, é fruto da cabeça de Ana. A Bibiana nunca existiu, é só imaginação. Será???
Ana agora está sozinha, sem Bibiana. Sabe que Bibiana não existe. Sabe que está vivendo em sua loucura e que cura para sua doença já não há. Já não sabe mais nada. Já voltou para casa, para o seu mundo. Já tem de volta a Bibiana que nunca saiu de sua casa, que está sempre no “espelho” da parede, está nela mesma, no seu quarto, no seu mundo, na sua cabeça, na sua loucura pessoal.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

NO LIMITE DO INSÓLITO

NO LIMITE DO INSÓLITO
(microconto-crônica em dois atos)

I – Os pobres também amam

(Andando na rua, uma garota com sua amiga veem um cercadinho feito de caixas de papelão – abrigo de mendigos)

– Gente que bonito! Olha o companheirismo dos dois. Olha como eles se têm um ao outro. Eles nada têm de valor, mas eles se pertencem e isso basta. E o pior - meu Deus - eles têm uma criança. Gente quanto cuidado dela, quanto carinho dele. Mas há ratos também. Talvez eles tenham fome. Será que eles já comeram? Eles se alimentam de quê?
– Vou lá, vou tentar ajudar. Sei lá, vou ver o que posso fazer. Talvez eu possa fazer alguma coisa.
– Não. Você é louca? Não se meta no que não é da sua conta. Você não tem nada a ver com isso. Não se intrometa!
– Por que tanta grosseria? Tanta frieza e insensibilidade?
– Insensível, eu? Insensível e insensata você. Você não percebe que tudo o que eles não precisam é de nós? Não percebe que eles estão se amando?
- Agora vejo: “Os pobres também amam”.

II – Os ricos também fedem

(Ainda andando pela rua, agora na zona sul em meio a condomínios de luxo)

– Gente, que fedor. Nunca imaginei ver tanto fedor assim em meio ao luxo e glamour da zona sul.
– Verdade! Que cheiro é esse?
(Elas então viram em uma esquina e se deparam com um imenso chafariz)
– Credo! É um chafariz de merda! É cocô! Parece que o encanamento rompeu. A rua está toda fétida e alagada, meu Deus!
– Gente, e ninguém fez nada? Ninguém tomou providência? Cadê o síndico da rua?
(Alguém ouve o comentário das moças, aparece na janela e grita):
– Ele é um bunda mole.
(O síndico se borrando de medo está com sua bunda mole sentada na privada de sua cobertura, de onde ele reina e não sente o fedor do mundo lá em baixo nem sabe que mendigos fazem amor).
(As garotas)
– Vamos voltar? O cheiro aqui é insuportável.
– Sim, logo ali tem um cinema, vamos nos refugiar.
– E que filme veremos?
– “Os ricos também fedem”.