quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Ó Morte, onde está a tua vitória?

Ela levou um tiro. Ela chora, eu grito. Se contorce, sangra, multidão, seus olhos permanecem abertos, a vida em seu peito não. Ela se foi, deixou-me, pobre e escritor, homem entregue ao vento e à dor, só no mundo e permaneço aqui. Onde habita a alegria do mundo? Qual é o verdadeiro efeito e eficácia da felicidade? Mineirinho é assassinado, com treze tiros no peito, quando só bastava um, a criança é assassinada, brutal e friamente, a empregada é confundida com prostituta e assassinada, o índio, o negro pobre e trabalhador que mora na comunidade, minha mãe também, minha mãe também foi assassinada, todo mundo, todo mundo, menos eu, logo eu que não me chamo Raimundo, que empobreço a rima sem criar uma solução. Não, não há solução! Só há a dor do sentimento do mundo que habita na pequena grandiosidade do meu coração. Hoje estou vazio e só, e sinto saudades das mirongas da minha avó, que também partiu, Tia Ló, também se foi, - quando? ninguém viu. Agora, como que num espasmo, silencioso e raso, tenho medo de perder a poesia que só a vida nos dá. Cai a tarde, mais um vez, até quando? De angustiado passo a aliviado e me sinto confortado por estar casado - desde o princípio, desde que eu participo, até a infinutude do finito - com a pena vil que me acompanha e que me perderá num dia funesto, sem tarde e sem sol, bem no fim da tarde, gravado no lápide que a poesia em mim persistiu, resistiu e prevalece, permanece.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Fruição

Nada é mais fluido e
Fluviante e flutual que
O céu azul

Fim da tarde
Anoitece
Cores, matizes

Noite fria e
Sem estrelas
Noite sem ti

O imenso azul
azul mais que azul
escuro

O quarto escuro
teu corpo
mudo

O céu azul
teu corpo no
lençol anil

Teu corpo em mim
imenso em ti
Noite sem fim

Nada mais é
fluido, fluviante
flutual...

...nasceu o sol.

O meu testamento

A pena, o papel, a caneta,
O teclado do meu computador:
O que seria deles sem mim?
O que seria de mim sem eles?

O melhor de mim são eles,
eles me navegam,
eles me arrebatam,
eu me epigramo com eles.

Poemar foi tudo que sempre quis!
Na verdade, o que sempre
Quis e faço é me livrar
De mim ou de ti

Com eles cavo meu túmulo
Sim, aqui jazo eu,
na quarta dimensão
peremptória do instante

E na lápide, não escrevam nada
pois agora que fui livrado
de agora em diante posso dizer:
o que eu escrevi está escrito.

Efemérides nº3

O vento passou pelo mar,
quem viu?
Eu não!
Fez navio naufragar.

O vento passo pelo ar,
sentiu?
Eu não!
Cegando pra sempre o teu coração.

Idos do mar

Ondas do mar
Ondas do mar
mar que me levas
mar que me traz
meu marido

Mar que me levas
Mar que me traz
Por que tu me levas
Por que não me tragas
meu mar ido

ido que vou
ido que vim
me leve contigo
pra imensidão
mar comprido

Temo que não
te lembres de mim
na imensidão
desse mar sem fim
meu marido

Ondas do mar
Ondas do mar
Como vou partir
se eu quero ficar
e assim me
martirizo

FRAGILIDADE DO MUNDO

“Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes fazer um cabelo tornar-se branco ou negro.” (Mateus, V, XXXVI)

FRAGILIDADE DO MUNDO

Vivia num mundo que era só seu. Não saia do prédio em que morava, nem do quarto em que dormia, nem da cama em que vivia, prostrada.
Tinha tanto medo do mundo. De que mundo?
Tinha medo do “mundo exterior”, como chamava o teu mundo, insólito leitor, e por isso vivia em si mesma, num mundo que era só seu. Não falava com sua família, somente a sua mãe lhe trazia alimentos e roupas limpas. Não tinha amigos, não recebia ninguém. Era agressiva com quem tentasse entrar.
Há quinze anos ninguém a via, com exceção de sua mãe e Bibiana, sua única amiga. A única que podia entrar em seu quarto a não ser sua mãe e o médico que sempre ia visitá-la. Mas Bibiana não entrava pela porta como os outros, tão pouco pela pequena janela do quarto de Ana, que ficava sempre fechada (– quem? Ana ou a janela? – Ambas). Bibiana simplesmente aparecia no quarto sempre que Ana desejava.
Não, não era uma amiga imaginária. Era uma menina de verdade.
A Ana sempre falava sozinha dizendo: “Nunca sairei daqui”, quando todos pediam e insistiam. Ana gritava e assustava os vizinhos que pensavam: “coitadinha”, “ela é louca”, “têm que interná-la num hospício”.
Ana sempre teve crises, talvez surtos epiléticos, acessos de loucura, não sei. Só sei que em meio às crises a mãe, D. Maria dos Prazeres, sempre vinha em auxílio da filha, e Ana, mesmo que fora de si, gritava: “Sai daqui, eu não estou sozinha não, hein! Eu não preciso de você. Você não está vendo a Bibiana aqui comigo? Ela está aqui!”
A mãe nunca viu Bibiana e ficava cada vez mais preocupada, pois sabia que o estado da filha era grave; e nunca houvera estado tão grave.
Um dia Aninha, como lhe chamava a mãe, teve outra crise, mais longa e mais grave, que a deixou inconsciente. Pela primeira vez em 15 anos Aninha foi obrigada a deixar seu quarto, seu mundo, para se tratar num quarto de hospital, no mundo do desconhecido, para se refugiar em seu estado de inconsciência, o lugar do total desconhecimento de seu próprio eu.
Após dois dias, Ana acordou e ficou desesperada. Onde estou? Para onde me trouxeram? Onde está Bibiana? Mal pôde respirar aquele ar, tudo era estranho. E todas aquela pessoas, quem eram?
De repente, olhou para frente e viu Bibiana, deitada numa cama como a em que ela estava. Ana achou tudo muito estranho e perguntou a Bibiana: Você também está assim como eu? Onde estamos? O que estamos fazendo aqui?
Bibiana nada respondeu.
“O que está acontecendo? ... Responde!” Bibiana permanecia muda.
Eu bem sabia o que estava acontecendo. Devia ser o efeito dos remédios de Ana, por isso Bibiana na lhe estava respondendo com fazia antes. Mas Ana não tinha dimensão disso, nem disso nem de qualquer outra coisa, ela estava totalmente desequilibrada.
“... Responda!”, gritava Ana. ... “Responda!!!”, gritava ainda mais alto, ainda mais nervosa.
Por um instante não se ouviu mais nada, até que um equipamento médico que a enfermeira havia esquecido perto da cama de Ana foi arremessado por Ana diretamente na cabeça de Bibiana.
Ela está completamente louca, pensei.
Ana olhava arrependida aquele pedaço de ferro que acabara de arremessar e que duramente flutuava e que em um segundo atingiria a cabeça da amiga; e Bibiana olhou fixamente naquele segundo em que não viu nenhum filme de sua vida passar em sua cabeça. Sim, não viu filme algum! Não deu tempo pra isso e tão pouco para que houvesse vida.
O metal acertou direta a cabeça de Bibiana e ela toda (a Bibiana), sem que houvesse sangue nem dor, se partiu em mil pedaços; ela não, eu, eu me parti em mil pedaços, que agora não sou mais Eu, sou Nós – eu e os outros estilhaços do espelho – pois ela, a Bibiana, sou eu, agora quebrado e fragmentário como o tempo e como a própria vida e aquilo que acreditamos ser a realidade – se é que realidade há. A Bibiana é reflexo, é fruto da cabeça de Ana. A Bibiana nunca existiu, é só imaginação. Será???
Ana agora está sozinha, sem Bibiana. Sabe que Bibiana não existe. Sabe que está vivendo em sua loucura e que cura para sua doença já não há. Já não sabe mais nada. Já voltou para casa, para o seu mundo. Já tem de volta a Bibiana que nunca saiu de sua casa, que está sempre no “espelho” da parede, está nela mesma, no seu quarto, no seu mundo, na sua cabeça, na sua loucura pessoal.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

NO LIMITE DO INSÓLITO

NO LIMITE DO INSÓLITO
(microconto-crônica em dois atos)

I – Os pobres também amam

(Andando na rua, uma garota com sua amiga veem um cercadinho feito de caixas de papelão – abrigo de mendigos)

– Gente que bonito! Olha o companheirismo dos dois. Olha como eles se têm um ao outro. Eles nada têm de valor, mas eles se pertencem e isso basta. E o pior - meu Deus - eles têm uma criança. Gente quanto cuidado dela, quanto carinho dele. Mas há ratos também. Talvez eles tenham fome. Será que eles já comeram? Eles se alimentam de quê?
– Vou lá, vou tentar ajudar. Sei lá, vou ver o que posso fazer. Talvez eu possa fazer alguma coisa.
– Não. Você é louca? Não se meta no que não é da sua conta. Você não tem nada a ver com isso. Não se intrometa!
– Por que tanta grosseria? Tanta frieza e insensibilidade?
– Insensível, eu? Insensível e insensata você. Você não percebe que tudo o que eles não precisam é de nós? Não percebe que eles estão se amando?
- Agora vejo: “Os pobres também amam”.

II – Os ricos também fedem

(Ainda andando pela rua, agora na zona sul em meio a condomínios de luxo)

– Gente, que fedor. Nunca imaginei ver tanto fedor assim em meio ao luxo e glamour da zona sul.
– Verdade! Que cheiro é esse?
(Elas então viram em uma esquina e se deparam com um imenso chafariz)
– Credo! É um chafariz de merda! É cocô! Parece que o encanamento rompeu. A rua está toda fétida e alagada, meu Deus!
– Gente, e ninguém fez nada? Ninguém tomou providência? Cadê o síndico da rua?
(Alguém ouve o comentário das moças, aparece na janela e grita):
– Ele é um bunda mole.
(O síndico se borrando de medo está com sua bunda mole sentada na privada de sua cobertura, de onde ele reina e não sente o fedor do mundo lá em baixo nem sabe que mendigos fazem amor).
(As garotas)
– Vamos voltar? O cheiro aqui é insuportável.
– Sim, logo ali tem um cinema, vamos nos refugiar.
– E que filme veremos?
– “Os ricos também fedem”.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Por que você faz poema?

Porque preciso do belo
Porque vou morrer
e quero o eterno

- Não quero eternizar-me;
nem glórias, nem ouro
nem louro quero

Porque no princípio
era o verbo
Porque sinto fome

E o verbo se fez carne

Porque minha boca
e corpo se saciam
nesse banqute de letra
crua

Porque me odeio e não tenho
vocação para suicida e, porque
a folha em branco ainda
me suporta
e assusta

E porque preciso dizer uma palavras
tão doces e ásperas e meigas

- Mas não posso -

E então me tornaria um espantado
- incompreendido? -

-Por que me abandonaste?

Não sou digno da poesia,
- Meus Deus!
Mas escrevo
porque me atrevo - a afronto -
e dela preciso
ela
material
ela
humus para o meu viver:

AVE PALAVRA
cheia de graça,
que te quero pura, que te quero
ainda que desgraçada

Porque a imaterial beleza explode em mim
e... não posso me conter...
porque amo, ... caos ...
desejo, vivo e experiencio ...caos... e
nessa experiência me elevo e sou rebaixado,
e sou mais um no meio ...caos... dessa multidão
de versos e congestionamento de estrofes,
neste caos total
a que chamo poesia.

Stabat Mater

Às vezes me pego relendo algo
que de tão meu me deixa emocionado.
- Meu Deus quem escreveu fui eu?
Muito emocionado: - Sou menos um fraco.

Obrigado Pai pelo dom da letra
Obrigado Filho redentor do verso
Glória ao Espírito do som e ritmo
eterno e à mãe que tem útero. Amém.

Ao pobre que já bem mais forte;
bardo andando à mercê da morte,
vê que jaz um outro filho seu
fruto d'árduas horas e de cardos.

Efemérides nº2

Passarinho voou voou
no imenso azul anil...
Uma folha caiu caiu
E o vento a arrastou...

Olho dela piscou, fechou
E guardou consigo o meu coração.

Efemérides nº1

Na vida em que eu vivi
perdi tudo o quanto foi de meu
Amputaram-me pernas e braços
Nem os dedos me restaram
para um último adeus.

Conjugação Vendaval

Eu vento
Tu ventas
Ele venta
Nós inventamos
Vós e eles, os poetas,
também inventam.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

EU PENO, TU PENAS, A PENA, APENAS

Isto não é um lamento.

Também não tenha pena de mim. Essa é minha pena, condenado (e que feliz condenação) à pena que escreve.

O ano da sentença 1991. A responsável pela execução: Tia Janice.

Eu era uma criança de seis anos e não conhecia a verdade. Eu sabia ler as figuras e era feliz. Mas Tia Janice, no Jardim de Infância – e como era lindo o jardim do meu Jardim – a começou a me ensinar que muitos daqueles riscos e rabiscos que eu olhava admirado eram na verdade letras e que letras de mãozinhas dadas eram palavras e palavras uma ao lado da outra viravam histórias. Aquelas histórias que eu desde sempre amei que mamãe contasse.

Tia Janice ensino que quando se sente dor é porque o “A” da a mão para o “I” e então a gente grita “AÍ!” “EI” “OI” “UI”... ensinou também que “au au” faz o cachorro Til Rex e que com o “I” e o “O” a gente podia brincar de “IO-IO”.

Mas chegou o tempo de avançar era o meu segundo ano naquele mundo chamado escola, naquela terra de letras e histórias e de fascínio...

Eis que ao chegar à 1ª série conheço a Tia Isa... ela que de fato me ensinou a conhecer as palavras, com ela, a partir de uma aprendizagem doloroso e algum prazer esparso eu aprendi que as palavras eram delicadas e fortes, e que queriam e precisavam de cuidado.

Ela me ensinou a fazer os antigos rabiscos fazerem sentido, com ela o prazer dos primeiros livrinhos, a primeiras histórias que eu mesmo lia... as primeiras histórias que eu mesmo criava nas aulas de Composição... e era tão mais belo ter aulas de Composição.

Engraçado em dia em que ele me chamou para tomar a leitura. Havia um texto, bem simples, bem pequeno, mas eu ainda não sabia ler. Havia também um desenho de um gato com um novelo de lã. Do texto escrito, mal me lembro e era justamente este que ela queria, mas da figura, do texto que não se escreve, este eu sabia bem dizer... e comecei a ler para ela...

Porém ela ainda não tinha essa compreensão de que quando eu lia a imagem e inventava uma historinha eu estava fazendo a leitura, a minha leitura, que eu estava percorrendo os bosques possíveis e quantos são os caminhos e lacunas existentes no tecido da palavra.

Ela ficou brava, porque eu fazia tudo, menos ler o que ela queria. E foi ali, a partir daquele momento, que eu aprendi... com dor, com sofrimento, fui, pouco a pouco tornando-me “perito em extrair faísca das britas e leite das pedras”, a ler palavras e palalavras.

Fui tomando gosto pela cartilha e pelos livros e pelas histórias e pelas minhas próprias histórias, as minhas composições, e pelas histórias que mamãe sempre a mim contava em casa.

Mas papel é frágil, efêmero... Não tinha me ensinado que o que se ganha se perde... Eu não sabia que se morre... Que só se é enquanto se é e logo depois já não se é mais. E num dia cinza houve um incêndio em minha casa. Meus livros, minhas composições, minhas coisas, tudo, TUDO foi pelos ares. Tudo foi consumido. Tudo. Não restou nem meu coração naquele momento que se dilacerou nas chamas, mas ao mesmo tempo veio uma tal vontade de viver, uma tal vontade de reviver, renascer.

Foi nesse dia fatídico que decidi que eu compraria livros e mais livros e teria a minha biblioteca. Para complementá-la eu escreveria histórias e voltaria a ser feliz.

Eu guardava todos os meus dinheiros para isso... tudo... sempre comprando livrinhos, dos mais simples aos mais loucos. Não me importava. Eu queria recompor minha existência, recompor minhas histórias para reconstruir minha própria história.

Eu imaginava que poderia ter e ler todos os livros do mundo e mesmo se eu não os tivesse, só de tê-los eu nutriria sempre aquela sensação gostosa de não ler o livro só para saber que você o tem e pode ler quando quiser e que isso nunca vai acabar.

Mal sabia eu a quantidade de livros que chegaria a ter e da impossibilidade de ler todos, mas ao mesmo tempo de algo eu sabia: que eles, os livros, são fonte de vida, que são “objetos transcendentes” e, como diz a música de Caetano, comecei a amá-los com amor táctil. Minha relação com eles foi se tornando como que uma relação do amor da menina de “Felicidade Clandestina” com As reinações de Narizinho. “Ela não era mais uma menina com seu livro. Era uma mulher com seu amante”.

Assim, talvez, era eu.

Tornei-me pouco a pouco em um aficionado pela leitura. Em todos os seguintes anos do ensino fundamental este gosto pela leitura foi sendo alimentado. Em minha escola tínhamos um dia dedicado à biblioteca – dia em que íamos para a biblioteca e líamos o que queríamos, uma leitura descompromissada, de prazer mesmo, o prazer do texto começou ali. Havia também um caminhão-biblioteca que era a coisa mais fantástica do mundo. Uma biblioteca itinerante que vinha, nos emprestava livro e voltava depois de quinze dias com outros e novos livros. Tudo como um grande incentivo à leitura. Parece que havia alguém, um anjo da leitura talvez, que fazia com que os melhores livros do mundo chegassem direto às minhas mãos. Eu me deleitava com tudo isso.

Ganhei prêmios na escola de leitura, na quinta série ganhei o prêmio de aluno que mais frequentou a biblioteca naquele ano. Mas eu não ligava pra isso. Nunca quis prêmios por ler, eu só gostava daquilo. Era um gosto estranho. Por que não jogar futebol ou videogame ou computador ou ir paquerar com a galera da escola? (não que eu não tenha feito isso, porque os livros não nos afastam do mundo, pelo contrário nos tornam mais atentos ao mundo e seus arredores) Mas não fiz muitas vezes todas essas coisas porque a vontade de ler era maior do que tudo isso. Eu me fazia essas mesmas perguntas, mas ao contrário: por que as pessoas fazem todas as coisas menos ler, que é tão bom?

Fui aos quatorze anos convidado para ser LEITOR na Igreja. Achava aquilo importante. Sentia-me muito honrado. Era a primeira vez que eu lia pra muita gente e ler coisa tão importante, ler escritura, ler a voz de Deus, a palavra dele. Eu me sentia um verdadeiro mensageiro, um arauto enviado do céu para comunicar aos mortais a palavra divina, porque no princípio era o verbo e antes da carne o verbo já existia e antes de mim e de ti que com teus olhos carnais devora as minhas memórias, antes de qualquer coisa, o verbo já existia, ele nos precede.

Talvez hoje seja esse para mim o sentido mesmo da existência. Saber que céus e terras passarão, mas minhas palavras não passarão.

Saber que – apesar de ter sido condenado há vários anos à branca dor da escrita, que precedeu a dor, hoje prazer, da leitura – a pena que me condena é a mesma pena que me conforta. É saber que quando nada nem ninguém mais houver, ainda sim haverá a palavra criadora que me precedeu e que sobreviverá a mim por ser eterna. Como Cecília em seu poema motivo: “Eu canto porque o instante existe/ e minha vida está completa/ não sou alegre nem sou triste/ sou poeta”.